Diz-se por aí que os Engenheiros Civis “calculam”…
É um dizer redutor: reduz a profissão a uma espécie de revisor oficial de contas das obras de construção civil.
O Engenheiro não “calcula”: O Engenheiro concebe uma forma para resolver um problema, antecipa um conjunto de funções e solicitações possíveis e imaginárias. Dimensiona e verifica o comportamento da sua obra. Torna a dimensionar, torna a verificar.
A solução mais perfeita no equilíbrio de respostas é a mais bela. A função que imaginou "fez" a sua forma.
Na busca do funcionamento perfeito pode usar modelos matemáticos, pode usar modelos físicos... pode recorrer a processos de verificação através rotinas gráficas, numéricas.
Deve saber isolar os principais descritores do seu problema: energia de deformação, reciprocidade com trabalho mecânico em regime elástico...
Pode prever fases plásticas, formação de rótulas, de estados de tensão instalados em obra, antes e/ou após serviço
Dependendo do tipo de obra começa até por procurar a melhor localização para a mesma, ponderando vantagens e inconvenientes para os usos, convenientes e inconvenientes para utilizadores, custos sociais, ambientais, directos e indirectos, de investimento e de manutenção.
Deve procurar ver os casos em que a corrosão electrolítica é importante, intuir se a histerese é significativa, se a fadiga existe, se há perda de massa ao longo do tempo, se a ressonância, impedância, resistência a fluxos fazem parte das variáveis a considerar.
Seja obra hidráulica, seja de edificação, seja planeamento físico, em todos os domínios o engenheiro civil deve dominar as ferramentas de cálculo diferencial e integral para, enquanto estudioso de física aplicada, poder aplicar de maneira expedita a álgebra e a geometria na verificação do comportamento da obra concebida face às vicissitudes previsíveis.
Reduzir o trabalho de concepção, modelação, dimensionamento e verificação a mero “cálculo” é reduzir o exercício do Engenheiro a calculismo de computador.
Se acrescentarmos ao cocktail redutor, a questão da “conformidade com os regulamentos” temos o suprassumo da redução: A profissão passou a ser uma mera certificação prática das ideias de outrem. Os autores assinam trabalhos coloridos, os calculistas validam em tons de cinza.
No filme “Elementos secretos” ou “Hidden Figures” no original de 2017 da 20th Century Fox aborda-se o papel anónimo de “computadores”. Era assim - computadores - que se apelidavam as equipas de matemáticos que trabalhavam, computando dados para a NASA em época anterior ao advento dos processadores IBM. (e as três afro-americanas cuja história é contada no filme eram “computadores”) O que faziam? – Cálculos.
E não era admitida a assinatura de trabalhos por “computadores”. Não eram autores – eram meros calculistas.
O que é que tem o tema a ver com o Prof. Eng.º Edgar Cardoso? Foi a primeira pessoa que veementemente me fez ver que reduzir o trabalho do engenheiro a “cálculos” era um perigoso sinal de desconsideração da autoria da obra. Certeiro e arguto como sempre.
Há talvez 40 anos um Engenheiro de cabelos brancos veio tirar dúvidas com um colega de curso.
O colega de curso era o famoso Professor Edgar Cardoso.
O Engenheiro das dúvidas e das cãs envelhecidas, pelo que percebi, era um técnico “retornado” que tinha sido apanhado como tantos outros nas voltas que a História de Portugal por vezes reserva aos seus. Tinha passado os melhores anos da sua vida numa colónia Portuguesa, estava estabelecido profissional e familiarmente. Continuou lá quando uma primavera trouxe a moda “politicamente correta” de se dizer “Províncias Ultramarinas” em vez de "Colónias".
Subitamente acordou - ele e a sua família - numa ex-colónia.
Deixou tudo, voltou com a família para a metrópole, e, como muitos, teve que se “virar”. Bateu a muitas portas e finalmente uns amigos deram-lhe um “cálculo” para fazer.
Interrupção súbita do Mestre: “Um engenheiro não é um calculista! Cálculos qualquer nabo faz… quem é o autor do projecto??”
Era uma bancada para um grupo desportivo com um esquema estrutural básico:
O nosso colega “sénior” depois de uma vida sem qualquer prática de desenho estrutural veio pedir ajuda ao antigo colega de carteira da FEUP…
E continuava:
- Devo-me ter enganado, apliquei o Cross, verifiquei com o Kani (que nunca tinha aprendido antes) mas não me aparecem resultantes horizontais… não consegui perceber onde me enganei… Faltam os impulsos horizontais por causa da inclinação da laje...
- E para onde é que esses impulsos “empurram”?
Um gesto com as mãos indicava timidamente o sentido da intuição do velho Engenheiro …
“Ai é?!
Oh chefe, então põe umas rodinhas na tua estrutura e vai atrás dela…”
Foi duro mas a frase do Mestre era simples e gráfica. O Professor não era assim tão ríspido nem com desenhadores nem com operários. Já com os Engenheiros…
É assim que lembro a conversa. Chocou-me na altura a dureza transmontana do Professor para com um Engenheiro com cabelos brancos… Hoje entendo melhor. Todo e qualquer ato de engenharia praticado por um indivíduo afecta toda a classe.
Calculistas não são engenheiros.
Engenheiros são autores licenciados. A licenciatura, como diz o Prof. Adriano Moreira, é uma licença para estudar.
Junho de 2020
João Basto